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O Contrato de Namoro e a Sociedade Líquida: Reflexões sobre Compromisso e Modernidade

Fernando Pereira, Jornalista, Teólogo e Mestrando em Ciências Políticas

Em um mundo cada vez mais complexo e volátil, a formalização de relacionamentos afetivos por meio de contratos de namoro tem ganhado popularidade no Brasil. Em 2023, foram registrados 126 contratos desse tipo nos cartórios brasileiros, e até maio de 2024, 44 casais já haviam formalizado seus namoros. Esta tendência revela muito sobre a nossa sociedade contemporânea e as mudanças nas percepções de compromisso e responsabilidade.

Sigmund Bauman, em sua teoria da “sociedade líquida”, descreve um mundo em que as relações humanas e sociais são caracterizadas por sua fragilidade e temporariedade. Segundo Bauman, a liquidez da sociedade moderna se reflete na instabilidade e superficialidade dos laços humanos, que se tornam facilmente desfeitos e substituídos. O aumento dos contratos de namoro pode ser visto como um sintoma dessa liquidez, uma tentativa de moldar e definir relações em um cenário onde o efêmero se tornou norma.

A formalização do namoro através de contratos parece uma solução pragmática para evitar mal-entendidos legais e patrimoniais. No entanto, também levanta questões importantes sobre o significado do compromisso na sociedade atual. A advogada especialista em direito de família, Jéssica Fernanda Vieira, observa que o contrato de namoro oferece segurança jurídica ao distinguir claramente entre namoro e união estável, evitando consequências como divisão de bens e pensão alimentícia em caso de separação.

A popularidade desses contratos pode ser interpretada como uma evidência da dificuldade moderna em estabelecer compromissos profundos e duradouros sem a necessidade de formalizações jurídicas. A advogada contratualista Natália Sobral aponta que as mudanças na legislação de união estável, que eliminaram requisitos como tempo mínimo de convivência e filhos em comum, impulsionaram a procura por esses contratos, refletindo uma preocupação crescente com a proteção dos bens pessoais e a clareza nas expectativas do relacionamento.

O caso do jogador Endrick, recentemente transferido do Palmeiras para o Real Madrid, ilustra essa tendência. Endrick e sua namorada, Gabriely Miranda, revelaram em um podcast que possuem um contrato de namoro com cláusulas específicas, incluindo a proibição de adquirir vícios, mudança de personalidade, e a obrigatoriedade de dizer “eu te amo” em qualquer situação. O contrato também estabelece que o casal deve sempre andar de mãos dadas e proíbe discussões na frente de terceiros.

Além de Bauman, outros pensadores oferecem insights relevantes sobre essa tendência. Jean-Paul Sartre enfatizava a importância da autenticidade e da responsabilidade individual nas relações humanas. Segundo Sartre, a liberdade individual deve ser acompanhada pela responsabilidade, e um contrato de namoro, ao tentar codificar essa responsabilidade, pode paradoxalmente miná-la ao institucionalizar o que deveria ser uma escolha livre e autêntica.

Aristóteles, em sua ética, falava sobre a amizade e o amor como virtudes que se constroem através do tempo e da prática contínua de valores compartilhados. A formalização excessiva das relações pode obscurecer a importância dessas virtudes, substituindo o compromisso pessoal e moral por um acordo legal.

É crucial que, enquanto sociedade, reflitamos sobre o verdadeiro significado do compromisso. Os dados sobre a popularização dos contratos de namoro revelam uma sociedade que busca segurança e clareza, mas também indicam um afastamento da profundidade emocional e moral que caracteriza os relacionamentos humanos mais significativos. Devemos buscar formas de fortalecer os laços humanos que transcendem a necessidade de um papel assinado, resgatando a autenticidade e a responsabilidade pessoal em nossas relações.

O aumento dos contratos de namoro no Brasil é uma resposta pragmática às complexidades legais e patrimoniais do mundo moderno, mas também serve como um espelho das nossas próprias inseguranças e da natureza efêmera das nossas conexões. Precisamos reavaliar como podemos cultivar compromissos profundos e significativos, valorizando a confiança, o respeito e a responsabilidade mútua, sem depender exclusivamente da formalização legal.

Em última análise, o desafio está em equilibrar a necessidade de segurança jurídica com a busca por autenticidade e profundidade nas relações humanas. Somente assim poderemos construir uma sociedade que valorize verdadeiramente o compromisso e a responsabilidade, sem que estes sejam vistos apenas como cláusulas em um contrato.

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