Já em sua época de atividade literária, no fim do século XIX, Liev Tolstói era um dos escritores mais célebres do mundo, reconhecido notavelmente na Rússia e na Europa Ocidental. Suas obras eram um sucesso estrondoso, como “Guerra e paz” e “Anna Kariênina” — por muitos, considerado o melhor romance de todos os tempos. Mas em 1879 a vida lhe pareceu subitamente estranha, sem sentido e vazia, e ele se debruçou em um tipo de autobiografia filosófica, com grande teor religioso: “Uma confissão”.
Tolstói tinha 51 anos, recolheu-se a sua grande propriedade rural na Rússia, com “uma esposa dedicada e uma família feliz com filhos bonitos e saudáveis”. Era reverenciado nas elites russas e entre o povo, e sabia disso, venerado até, e vivia uma vida abastada. Seu maior estímulo para escrever, como confessou, era o volumoso dinheiro que recebia para isso. Então, começa a lembrar sua juventude “libertina”, quando se divertiu e fez o que tinha vontade, ainda que de forma inconsequente, “cometendo todos os pecados, até assassinato [em duelos marcados, por exemplo]”.
Ao mesmo tempo, o ícone russo destaca que sempre investira no autoaperfeiçoamento, aprendendo e ensinando como professor e professando como membro da elite cultural, em especial antes de sua dedicação ao casamento. Liev podia dizer a si mesmo que tinha vivido de fato, apesar da culpa exatamente por tê-lo feito. Porém, a culpa mais lancinante era não conseguir ver, em tudo o que já vivera e vivia então, uma razão para estar vivo.
Por isso o lendário autor russo começou a ponderar sobre tirar sua própria vida. Ia deixando a corda no pescoço para depois — “sempre haveria tempo para tirar a vida mais tarde”. Chafurdava em uma crise existencial horrenda, em uma idade avançada para antes do século XX, quando a morte chegava cedo para a maioria das pessoas. Mas a morte chegou-lhe ainda em vida, como uma condição espiritual e não física, já que declarou que guardava muita força e disposição, inclusive para o trabalho meticuloso e visionário da escrita.
Em “Uma confissão”, Tolstói derramou-se na tinta e no papel, questionando desde os hábitos religiosos da Igreja Ortodoxa e da fé cristã — para ele, vagos e sem significado — até a condição sagrada do tsar e sua família. E a vida: como se forma, como se perde, como de onde vem?
O coração de Tolstói exposto é barrado pela censura — mas consegue escapar, e comove a outros milhares
O livro das confissões de Liev Tolstói estava previsto para ser lançado em 1882, mas foi barrado por aquela Velha Senhora Retrógrada: a censura. Em 1884, porém, foi impresso em Genebra, Suíça, quando já circulavam infindáveis cópias manuscritas no Império Russo. Oficialmente, “Uma confissão” só recebeu o “aval” para ser oficialmente lançado na Rússia em 1906, quatro anos antes da morte de seu autor. Ali o regime tsarista e o controle da Igreja Ortodoxa já se viam enfraquecidos, como a vigilância estatal.
Pois bem, aos trancos e barrancos “Uma confissão” atingiu milhares de pessoas. E, embora certos críticos discordem, é entendido como um marco para sua verdadeira conversão religiosa: sua vida se dividiu em antes e depois da redação dessa obra tão intimista e carregada de questionamentos. Questões estas que Liev levava consigo há tempos, desde sua juventude “libertina” até a glória da fama; não se esqueceu delas mesmo com uma família ideal e o reconhecimento de seu trabalho.
Assim, inspirado nas confissões do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII, e provavelmente até mesmo nas “Confissões” de Santo Agostinho, um clássico milenar e ainda hoje um cânone, exigiu respostas, ou ao menos registrar suas perguntas no isolamento de sua fazenda, em meio a trabalhos rurais e a um encontro com si mesmo. Estava cansado de uma Moscou que tinha crescido rápido demais, com a expansão da indústria, do comércio, do barulho e — que tristeza — da exploração dos mujiques, os camponeses pobres.
“A fé é a força da vida”: Tolstói busca um sentido e não escapa de Deus
Ao começar “Uma confissão”, Tolstói — como descreve — já não rezava, não frequentava igrejas, não acreditava no sagrado e nem em rituais religiosos. No entanto, sentia que existia um algo maior, um algo que até achava que ria de sua vida sem sentido, que o criara apenas para seu entretenimento de maneira sádica e torturante. Sabia de sua boa vida, se encarada racionalmente ou de acordo com os ditames de seus tempos, mas não bastava. Havia a questão de em que acreditar. Podemos ver o peso da fé na vida e na obra de Liev já na primeira frase de seu livro confessional: “Fui batizado e criado na fé cristã ortodoxa.” E ele continua: “Mas, aos dezoito anos (…), já não acreditava em mais nada do que me haviam ensinado”.
Então, Deus ali não existia para o mago das palavras, autor de tantos clássicos atemporais.
Tolstói inicia seu relato pessoal por aquele período que costuma tanto em nós se entranhar: a infância e os amigos de infância, a escola, e depois a busca do conhecimento, do dinheiro e da fama, e do reconhecimento social. Pequenos sentidos para a vida seguir em frente e mostrar valor. Aos 51 anos, porém, se viu contra a parede: “A aceitação e a confissão declaradas da fé ortodoxa se encontram, na maior parte, em pessoas estúpidas, cruéis, imorais, que se julgam muito importantes”. É que para ele a religião em voga em seu mundo não tinha mais razão de ser, consistiam em rituais de aparência e conveniência engendrados desde o catecismo na mais tenra idade.
A religião, como a vida, perdera o sentido para Liev. Para que viver? Precisava de uma transformação, um homem visto como “rei” por muitos, mas que se sentia um “inseto” como Gregor Samsa em “A metamorfose” de Franz Kafka. Mas também a “formação de pessoas do seu tipo”, da intelectualidade e da elite, não lhe eram suficientes. A “luz do conhecimento e da vida” havia “posto abaixo um edifício artificial”. Ele grita: “Tendo tomado consciência dessa falta de sentido, não podia continuar.”
“Comecei a escrever por vaidade, cobiça e orgulho”, confessa, e que muitos de seus colegas escritores viviam nessa neblina de competição e superficialidade. Após voltar da guerra, conheceu e veio a se frustrar com “essas pessoas de pensamento”: os artistas, os poetas, “nós”. “O que sei e o que devo ensinar?” — ele ainda não sabia, já na feitura amadurecida de “Uma confissão”. Mais uma vez: se a fé lhe era inócua, também o eram toda a sociedade, o trabalho árduo de escrever, o sucesso, o conforto da vida familiar, a vida. O progresso e a racionalidade haviam atingido seu limite, não podiam mais alcançar Tolstói, como ele percebe. Então, que lhe restaria?
“Uma confissão” é isto: uma jornada íntima de autoconhecimento e obsessão com o sentido da vida. Obsessão que literalmente salvaria sua vida da forca e seu espírito da autocondenação. “As pessoas escondem de si mesmas a própria incompreensão da vida”, observa, mas o que lhe importa de fato não é o que as pessoas dizem ou fazem, mas seu coração. Aí encontrou seu ponto crucial: a fé e o sentido, ou os sentidos da vida, só poderiam vir da alma, do mais fundo de seu ser. Rondava sempre os mesmos problemas insolúveis, e o caminho era a humilde aventura silenciosa de olhar para si mesmo com uma honestidade assustadora, desde o garoto Liev até o laureado escritor Tolstói.
“Por quê? Para quê? Muito bem, mas e depois?”, escreveu.
“Você será mais famoso que Gógol, Púchkin, Shakespeare, Molière, todos os escritores do mundo… mas e daí?”. O que se avizinhava sempre, no fim, era a morte verdadeira, a aniquilação completa, um corpo devorado por vermes. “A vida me dava enjoo” e “eu desejava me afastar da vida”. Desejava se livrar dela, mas ainda esperava dela alguma coisa. Essa “coisa” era o próprio sentido, para além “do que se considera a felicidade perfeita”. Era, viria a descobrir, Deus, e, Nele, redescobrir quem era Liev, o menino que parou de rezar aos dezesseis anos, mas cujo niilismo materialista não havia lhe satisfeito como esperava. Uma “condição espiritual”, explica: a vida não podia ser cruel e absurda, uma completa ilusão.
Liev desiste de entender Deus e passa a vê-Lo pela simplicidade da fé: uma lição
Toda a íngreme e tortuosa trajetória de Liev Tolstói, na vida e condensada em “Uma confissão”, leva-o a uma epifania. Tal transformação ocorre quando finalmente decide abandonar a busca intelectual e se voltar para a vida comum e para a crença do povo — que antes menosprezava, eram “rudes” e “sem conhecimento”. Mas decidiu: em lugar de tentar entender Deus, começaria a aceitá-Lo por meio da fé.
Fica claro de repente: a verdadeira fé não é um conjunto de dogmas, mas uma forma de vida baseada na humildade, no amor ao próximo e na aceitação da vontade de Deus. A mensagem do Evangelho se ressignificava dentro dele mesmo, não sem alguma confusão, resignação e sofrimento, mas, afinal, a satisfação. Porque Tolstói encontra a paz e o significado de sua vida. Alcança isso ao atravessar com coragem sua crise existencial, assumindo seus erros, suas dúvidas, seus desejos e anseios. E como triunfou? Rendendo-se.
Tolstói percebe que deve parar de lutar contra a fé e se entregar a ela. A Deus, a este Algo Maior do qual tentou, mas não conseguiu fugir. O final do livro mostra sua redescoberta de Deus não como um conceito abstrato, mas como a fonte de toda a vida. Ele, que tivera e ainda tinha praticamente tudo o que a vida lhe poderia oferecer, só acha descanso quando decide dedicar sua vida à prática dos ensinamentos de Cristo e à moralidade cristã. Tal decisão — porque sempre é uma decisão — é sua metamorfose pessoal e intelectual. Não se trata apenas de religião: é a fé renovada que lhe dá um propósito, mesmo e justamente por criticar a Igreja Ortodoxa Russa e o Estado, que considerou corruptos e distantes da verdadeira mensagem de Cristo.
Setembro Amarelo: o mês para refletir sobre a vida
Neste Setembro Amarelo, como vem sendo em todos os setembros em vários países, dedicamo-nos à prevenção do suicídio — que cresce no Brasil e no mundo — e ao acolhimento de tantas almas perdidas que não veem sentido em sua vida. Também devemos acolher nossas próprias questões, quem somos, o que queremos, nossas dores e as dores do outro.
Não é da noite para o dia, como não foi para o sábio, libertário e valente Tolstói. Mas talvez o caminho seja sempre retornar, não importa onde estejamos, a nossas crenças mais símplices, a nossa fé inabalável, a consciência pessoal do ente divino. De fato, a vida seria vã em qualquer cenário se não houvesse algo maior, inteligente e com um coração, provido de sentimentos como o coração humano. “Feitos à Sua imagem e semelhança.” Só Nele, porque Dele viemos, podemos nos encontrar e encontrar a paz.
Esta foi a “guerra e paz” da vida de Tolstói, como no título de seu clássico. Uma batalha íntima, árdua e intrincada que, no fim, se curvou — quem diria? — aos sentidos de humildade, amor e fé. E isso, apenas isso, bastou afinal.
Leia mais: “Para quê? Mas e depois?”: Tolstói nos convida a pensar no sentido da vida em sua “Confissão”Acidente Assassinato Belo Horizonte Betim BR-040 BR-116 BR-251 BR-262 BR-365 BR-381 Contagem Corpo de Bombeiros Crime Divinópolis Governador Valadares Grande BH Ibirité Ipatinga Itabira João Monlevade Juiz de Fora Lula Minas Gerais Montes Claros Nova Lima Patos de Minas Polícia Civil Polícia Federal Polícia Militar Polícia Militar Rodoviária Polícia Rodoviária Federal Pouso Alegre Previsão do Tempo Ribeirão das Neves Sabará Samu Santa Luzia Sete Lagoas Triângulo Mineiro Tráfico Uberaba Uberlândia Vale do Rio Doce Vespasiano Zona da Mata mineira




